Adolescentes

A adolescência é uma época fantástica. A intensidade é absurda, as proporções desproporcionais. Pelo menos comigo era assim.

Tinha um ultra romantismo piegas, com um misto de Reginaldo Rossi, Wando e Álvares de Azevedo (os dois primeiros pelo ridículo, o terceiro pelo dramático). Bastava um olhar mais demorado para me ver perdido de amor, amor eterno, visceral e passageiro. Durava até a próxima paixonite aguda.

Tiveram uns lances de novela, nesta época. Quando estava com uns 13 pra 14 anos, conheci uma fulaninha (óbvio que não citarei nomes aqui) em uma viagem para próximo de Belém, que no auge da paixão instantânea trocamos juras e prometemos que nunca nos deixaríamos. Marcamos um dia para nos vermos na capital, porém ela não foi. E eu não tinha nem um contato dela. Não sabia seu endereço, nem seu telefone.

Os adolescentes de hoje não tem ideia de como era difícil essas coisas nessa época. Telefone era coisa de rico, celular, então, acho que nem existia ainda em Belém. Neste tempo puro mofo, ainda mandávamos carta, tipo Pero Vaz Caminha.

Fiquei igual ao Cauby Peixoto e “chorei, chorei, até ficar com dó de mim”. A gente pensa que nunca vai superar, que o pobre do coração permanecerá partido, que o sol nunca mais voltará a brilhar, e que a terra desistirá de girar, tamanha a desilusão.

Em outras palavras, frescura mesmo. Na outra semana, tudo normal de novo.

Também era legal a ingenuidade. Sinceramente, é MUITO chato ficar lendo as entrelinhas de cada frase que escutamos. “hum, fulano disse isso, então deve estar pensando naquilo…”. Este modo maldoso de ver a vida é algo que só atingimos na fase adulta.

Penso que isto (a inocência) é digna de ser procurada. Por que temos tanta dificuldade em confiar? Não precisamos obrigatoriamente perpetuar o ditado “cachorro mordido de cobra tem medo de linguiça”. Vale a pena confiar mais. Talvez seja isso que Jesus ensinou, quando disse que devemos ser como as crianças para herdar o Seu Reino.

Os adolescentes pensam que podem ser o que quiserem. E eles estão certos, certíssimos. Podemos ser o que quisermos, basta tomarmos as decisões apropriadas. “Aponta pra fé e rema”, negada! Sinto falta destes arroubos, e mim e nos outros coroas. Acredita, e vai “simbora”!

Astronauta, bombeiro, rock star, ator, jogador de futebol, pregador… Corra atrás, temos tempo. Ainda não chegamos nos nossos dias mais produtivos.

A única coisa que lamento nos adolescentes é que um dia eles serão adultos. Se seguirem a tendência, farão parte de um grupo sem graça, sem sonhos, sem ânimo. Mas, se conseguirem manter o coração aceso, serão extraordinários.

Lembranças

Vou remontando um quebra cabeça.  Na medida em que junto as peças, vou-las publicando aqui.

Mas o compromisso não é, necessariamente, com a exatidão histórica. É com as sensações. Conto a vida como num sonho, a narrativa dispersa, entre rima pobre e prosa “paia”.

É catarse, cortes, rupturas, gritos.

É o lúdico pouco lúcido remanescente da infância.

É a resposta automática aos cabelos brancos, que surgem rápido e se insurgem contra os que permanecem pretos,expulsando-os da minha cabeça.

É a idade, Horácio*, é a idade.

*Referência ao personagem da peça Hamlet, de Shakespeare.

Contar os Anos

“Ensina-nos a contar os nossos anos, para que tenhamos coração sensato!” (Sl 90,12)

Preciso aprender a contar os anos. Sempre fui ruim nesse aspecto, nunca me percebendo na idade certa.

Por ser o caçula de quatro irmãos, acelerei, pulei etapas, na ânsia de me livrar do estigma de caçulinha.  Queria estar no mesmo momento de vida que meus irmãos, ser mais velho que era. Lia os mesmos livros, queria fazer o que eles faziam, media a minha vida pela deles.  E envelheci cedo.

Fui o único menino de treze anos que lia Nietzsche da redondeza. E achava que entendia. Debatia sobre política, filosofia, religião, música com os caras mais velhos, muitas vezes dominando certos assuntos melhor que eles. A consequência foi um ego cada vez mais inchado. Para mim, todos os que não eram eu, eram carentes de inteligência.

Aos dezoito, pensava que sabia tudo da vida, que era o “descolado”. Via-me adulto feito, pronto para todos os desafios que viessem.  Era o dono da razão, sempre.  Então, tomava decisões sozinho, pois só eu era o certo.

Mas o fato é que eu era ainda mais estúpido que hoje. Não enxergava um palmo na frente dos meus olhos, um avestruz com a cabeça enfiada na terra. Era inocente e não sabia. Acreditava nas pessoas, porque cria que eram boas. Mergulhava de cabeça, pois não tinha parâmetros para a dor. Não tinha descoberto que o lago, às vezes, é raso.

Como não contava os anos, não sabia que eu era um menino.   Magoei muita gente querida enquanto quebrava a cara.  Soquei facas, fazendo pose de macho, cauterizando choro que não ousava chorar.

Comecei a ser gente lá pelos vinte e quatro. Uma voz chegou aos meus ouvidos: “Não importa quão precoce você é, você não tem experiência de vida”.  Vi ruir minha prepotência, meu orgulho virou cacos. Havia lama nos meus olhos, enfim lavada pelas lágrimas que pude, finalmente, derramar.

Ainda busco contar os anos de modo certo, e ainda sou o cara de trinta anos mais velho da redondeza. Não tenho um coração sensato. Mas aprecio o passar dos anos, a serenidade que passo a passo tem chegado.E sei que no tempo certo, chego lá.

Trilha Sonora

Tem uma FM na minha cabeça
Tocando sons antigos,
Alguns já esquecidos,
Outros sempre lembrados.

Neles viajo pelo tempo
Revejo a história.
A narrativa é em primeira pessoa.

Leva-me.
Revela-me.
Enleva-me.

Momentos têm trilha sonora.
Arrebatado em mim
Os aprecio novamente,
Como um vinho envelhecido lentamente
Com o correr suave dos anos
Acariciando o barril de carvalho.

Fecho os olhos e escuto.
Tem uns sons antigos
que reverberam na alma.
É a existência em notas.

Então, mesmo sem sentir, canto.
Já não é passado, fez-se presente.
Ocupou o seu espaço.
Permaneceu.
Eternizou-se no ciclo de viver e reviver.

Sempre lembrados, não mais esquecidos.

Cenas

Já passaram-se doze anos..

Cena 01:
Tarde na sala, revirando vinis velhos, escavando boa música com a dedicação de um arqueólogo. A poeira e o mofo já nem incomodam mais, de tão habituado a eles. Descubro a boa música. Elis, Bethânia ( em especial o “Recital na Boite Barroco”), Chico, Caetano (ainda tropicalista), Jorge Ben (antes do Jor), tantos outros. A música permeia meus dias, entranha na minha pele. Eles cantam minha história, meus amores, meu ímpeto adolescente. Sou eu, metamorfoseado em versos e melodias, derramado no mundo a partir da sala da minha casa no Coqueiro.

Cena 02:
Volta pra casa. Olho pela janela do “Jibóia Branca” lotado e fedorento, enquanto o sol que reinava absoluto se esconde por trás de pesadas negras nuvens. O retorno para o lar sempre trazia consigo essa aventura, com a pontualidade britânica das águas amazônicas. Preparo-me para a corrida desenfreada para chegar em casa antes da chuva. Desço, corro, molho-me. As bainhas da calça de tergal azul tornam-se marrons da lama, a queda espreita a cada passo. Chego encharcado, ofegante, a adrenalina pulsando forte nas veias. De novo. Prometo que no outro dia levarei o guarda chuva. Nunca cumpri essa promessa.

Cena 03:
Minha varanda tem a voz do Paul MacCartney. Deitado na rede, com a perna dando o impulso que implusionam os meus sonhos, fecho os olhos para ver o futuro, negligenciando o presente. Minhas digressões fazem-me percorrer a vida, com o peito cheio de esperança, e me levam a crer que no fim tudo dará certo, mesmo sem saber como. Varanda, Beatles, rede e sonhos compõem um lindo quadro, já vivido. E perpetuaram-se no imaginário.

Palavras

Brinco com as palavras do mesmo jeito que brincava de playmobil quando criança. Despretensiosamente, meio passatempo, meio compulsão. Tenho que escrever.Por sinal, comecei a escrever ainda criança (o que prova que nem sempre melhoramos com o tempo). Era algo natural. Eu “roteirizava” a brincadeira, sempre tinha uma história por trás das aventuras ocorridas no quintal. O passo seguinte foi passar para o papel aquelas mesmas histórias. Nasceu, então meus primeiros dos livros, lançados quando eu tinha entre 6 e 9 anos. Eram do tamanho de 1/8 de ofício, P&B, umas 5 páginas. Desempenhava também a função de ilustrador. Graças a boa vontade dos meus pais em embarcarem na brincadeira.

Depois de um pequeno ostracismo, comum a todas as “crianças prodígio”, voltei a escrever na adolescência, junto com um amigo meu, em uma publicação chamada “Hipócritas”. Devido a um profundo anacronismo nosso, éramos James Dean em plenos anos 90, éramos iconoclastas, satíricos, soltos no “Velho Paes”, Colégio que ainda hoje se ufana de ser o “Colégio mais antigo do Brasil em funcionamento!”. Cada edição nos valia uma ida à coordenação ou diretoria. Colávamos o nosso jornal nas paredes do colégio, curtíamos o momento de fama, e passávamos horas tentando defender a “liberdade de expressão”.

Teve uma ocasião em especial que nossa ida para o SOESE (acho que era essa a sigla da orientação escolar) nos valeu um debate ideológico com o Pinduca, o Rei do Carimbó. O mesmo estava lá por que sua sobrinha precisava justificar umas faltas, pois contratar parentes para dançar carimbó não é considerado nepotismo. Em pouco tempo, o mesmo relembra os tempos da caserna e discursa sobre a importância do “sangue na sarjeta” (expressão literalmente utilizada) para a manutenção do Estado Democrático de Direito. Saí de lá imaginando as mensagens subliminares por trás do “macacuo do macaco macacu macacual, eu conheço um macaquinho que é filho do macacão…”

Nesta época, comecei a enveredar pela poesia. Todo poeta adolescente teve um sublime objetivo para percorrer as veredas do verso e rima – arrumar namorada! Óbvio. Achava que os versinhos desencontrados e comuns iriam compensar a falta de encantos físicos. E pior, não era o único que achava. Passei a fazer poeminhas encomendados pelos meus amigos. Talvez fiasco defina bem os resultados. Ou tragédia. Ou melhor, tragicomédia: pra nós, trágico, pra elas, comédia.

Na fase adulta, novo ostracismo. As coisas perdem um pouco a graça quando se está no início da vida adulta. Depois melhora de novo, quando se aprende que não se deve levar-se tão a sério. É a maturidade, que só será plena quando formos de novo crianças.
Reencontrei a escrita já na Igreja, com a criação do “Do Outro Mundo”, meu micro-jornalzinho cristão. Foi a minha trincheira, onde defendi o que tenho por verdade, mais ou menos do mesmo jeito que aqui. Parei de escrever em uma noite escura, e depois resisti em me institucionalizar.

Hoje, só brinco com as palavras. Preciso delas, são ótimas companheiras. Elas organizam o meu mundo caótico de ideias, sonhos, loucura e fé. Eu as uso para me expandir, elas me usam para existirem.

Quase Eu.

Às vezes penso na vida. Na essência das coisas. Talvez ache que a vida é um caminhar em direção a nós. Ao que há de melhor e pior em nós. Talvez ache que ao nos descobrimos encontramos algo diferente de nós, e parecido com Jesus. Talvez.
Mas sei que quem quiser viver tem que ter vida. Esta vida intrinsecamente dinâmica, bela, pulsante, rica. Bela e aterrorizante. Com temor e tremor, disse Paulo, não por medo, mas pelo extraordinário, intenso, imenso.

Vida.
Cada segundo explodindo de sons, cores, cheiros.
Cada momento pode ser sentido.
Cada momento tem sentido.

“Quase Eu” é uma caminhada.
“Quase Eu” é uma busca. É a procura por vida, por amor, por Cristo do Evangelho.
“Quase Eu” é um encontro. Comigo, com almas livres, pares da mesma cruzada.
“Quase Eu” é a espada em punho, coragem!
É navegar no imenso e desconhecido.
Acompanhe-me.

I – Pré-história:

Quando começa uma história? Era uma vez… A deste navegante não teve essa vez. Ainda está começando, junto com os raios da manhã. Toda manhã.
Comecemos, pois, da pré-história. Parto sombrio. Relutante. O nascer advindo do desespero e do engano. Fórceps de Deus marca as têmporas, no esforço de trazer ao mundo este rebento arrebentado pelo cinismo que mascarava a fragilidade, pelo ceticismo que cobria a inocência de quem acreditava em tudo.
Arrancado, visceralmente, puxado para fora, gritando de dor. No meu lar, ruínas de lar, olhei para cima pela primeira vez. Pela primeira vez, vi meu Pai, meu Senhor, o que me fez e me comprou.
Nasci na dor, na cinza da alma. A cinza do cinzeiro, já usado, portanto sem valor, a não ser denunciar o próprio vício.
Nasci no escuro. Não enxergava um palmo à frente. Juntando os caquinhos da minha alma às apalpadelas. Super Bond nela.
Senti falta de babá. Esquisito, bebê com cara de coroa, todos me achavam mais capaz do que sempre fui. As marcas na têmpora ardiam, como ainda ardem. Cresci sozinho, pulei o Bê-a-Bá, me limpei como pude. E me virei como deu.
Nesta primeira fase, ainda não via. Demorei muito a começar a enxergar. E nem queria. Enxergar é ver, ver é contemplar o real. Enxergar é ampliar as percepções, o mundo, o horizonte. E eu não tinha nem nervos nem estômago para isso. Eu não tinha 1,10m, portanto não andava em montanha russa.
Apenas confiar. Frágil, só, pequeno, cego. Que podia fazer além de confiar Naquele que me trouxe à vida? Sem questionamentos, sem anseios, nem expectativas. Precisamos de tão pouco!
Fui deslizando pelos dias. Amizades descartáveis, pratos descartáveis, copos descartáveis. Fui passando ao sabor do vento, noites ao relento, dias sonolentos. Fui deslizando pela vida. As lembranças se embaralham pela falta de profundidade – tudo era raso, quando deveria ser raro.

Amigos, Irmãos.
Raros, únicos.
Esteio na dor,
Motivo pra rir.

Amigos, Irmãos
Nem tempo, nem espaço.
Além dos limites.
Além das prisões.

Espíritos afins, avante!
Cantemos.
Celebremos o que está além de nós.
O que está em nós.
O singular compartilhado,
Tornando-nos plurais.

Espíritos afins.
Espíritos unos.
Irmãos.
Um.

Fui deslizando. Aos meus amigos, meu amor. Aos outros, sei lá, não perco tempo com besteira.

II – Viajantes

Para falar de mim, tenho que falar dos que também navegam. Cada um do sue jeito, dão um colorido a mais aos mares e rios. Conheci alguns que singram em caravelas. Aquela sabedoria ancestral, a força, as velas içadas. Acolheram-me como se as velas deflagradas fossem redes para embalar sonhos tranqüilos, soneca em casa de avó. Ensinaram-me sem saber que o faziam, como quem compartilha um doce. Beijaram-me a fronte, sem se importar se eu era um melequento. Segurança, paz. Que bom saber que existem pessoas que depois de tantos anos dançando com as ondas, permanecem imponentes, cientes da sua experiência. Que frota linda o meu Almirante tem.
Outros preferem lanchas. Jovialmente encaram as ondas, riem das valas deixadas pelas embarcações maiores. Aos poucos, aos muitos, não importa, o que vale é a velocidade. Puerilmente ousados lançam-se de cabeça, intensos, apaixonados, apaixonantes. Verão sempre! No máximo uma primaverazinha! De vez em quanto.
Infelizmente, conheci o remake contínuo do Titanic… Sempre orgulho, entranhado como se fora seu gene. A beleza ostentada, os porões abarrotados de ratos, dejetos, doentes, sujos e pobres. Celine Dion está rouca! Canto forçado, estranho, infeliz, da tragicomédia humana, da loucura que originou o Mal. Celine Dion está rouca! Canta, canta e grita a morte anunciada pela presunção. Celine Dion está afônica… remake contínuo do Titanic. E ele sempre vai a pique.
Quanto a mim, vou de “pô-pô-pô”, onomatopéia para o barquinho amazônico, do rio-mar barrento. Romântico, com os botos e pirarucus à volta. Com o cheiro de mangue, com fiapo de manga no dente. Vou de “pô-pô-pô”! Feio, pequeno. Porém de verdade. Não sou de Holywood. Sou o barquinho que quer glorificar seu Deus pela singeleza.
Já não tenho a velocidade frenética das Lanchas. Talvez nunca chegue a Caravela Mas posso apreciar a paisagem.

Céu, terra, rio, mar.
Pontinho preto no meio de tudo?
Eu.
Respingado, saudoso, corajoso, perdido.

Respingado de Céu,
O máximo que posso conter
São gotas.
Orvalho, chuvisco, gotas.
Amor e graça em gotas.
Pontinho preto encharcado de Céu?
Eu.

Saudoso de terra.
Da terra em que fui gerado.
Do colo de mãe.
Carinho de pai.
Terra nas unhas, pé machucado pelo futebol ruim.
“Chuta a bola e não o chão, menino!”
Choro, casa, colo, carinho.
Pontinho preto choroso da terra?
Eu.

Corajoso de rio.
Um curso, correnteza.
Uma imediata no mesmo barco.
Planos, sonhos, metas
Avolumando-se juntos as águas.
Riachos deságuam, impulsionam, empurram pra frente.
Pontinho preto desafiando o rio?
Eu.

Perdido no mar.
Imenso, desconhecido, mar.
Muito maior que as gotas.
A terra engolida por suas ondas.
O rio bebido por sua força.
Final de tudo, o mar.
Lá onde meu Almirante está.
O extraordinário, imenso, intenso.
Pontinho preto absorvido pelo mar?
Eu.

Ao meu Almirante, louvores. Aos navegantes, coragem! À minha imediata, beijinhos. Aos que permanecem no porto, meus pêsames.

III – Percepções:

Meus sentidos foram se abrindo. Gradualmente, sem alarido, sem esperar. Como descrever o som ao surdo? Sentindo a vibração causada por cada nota. Sentido que cada nota encontra o eco no interior do ser. A certeza do certo confirmada pela alma – escavação arqueológica do espírito. Pulsa, bate, ecoa, ressoa. Milagre da união de notas avulsas, metamorfoseando-se em melodia. Existe música, sons em poesia. A Voz guia os passos de quem ainda não vê. A Voz firme, cálida que pronuncia seu nome, irresistível. Estranhamente familiar, mesmo a quem nunca a ouviu antes. A Voz geradora de vida, que faz o coração bombear, que abre os nossos pulmões no primeiro dia, e o fechará no último. A percepção do infinitamente belo.
Cheiros me confundem, apontando para sabores não descortinados pelo palato. Cheiros que vão marcar a trajetória, depois serão “start” da memória. Gostos. Dias de mel, outros de ervas amargas. Gosto do amargo realça o doce.
Ainda na câmara escura. Tato. Eu sinto, logo?… Tocar o outro, saber que a vida também está ali. Tocar o outro, quebrar as fronteiras entre o eu e o tu. Ser tocado, como é bom chorar acompanhado! Tu me entendes? Sabes que existe alguém além de ti? Quero quebrar esta fronteira maldita que deixa a todos entrincheirados dentro de si. Eu sinto, logo?… Sinto muito por sentir tanto. Sinto muito por sentirmos tão pouco.
O mundo cresce na medida em que as percepções se expandem. Posso viver sempre no quartinho escuro, fechado em mim. Ou posso abrir a porta. Mito da Caverna de dentro de nós. Tudo é mais. É maior.
Tenho que sair do quarto e ver a rua. Outros andam as tontas como eu. Outros tontos se escondem em baixo da cama. Tenho que sair. Ruas, bairros, cidades. Tenho que sair. Já não basta a rua, preciso da Lua.
Vejo vultos. Imagens imprecisas, turvas como os meus olhos. Tudo está lá, eu que não vejo. TV preta e branca, antena meio torta. Por que não ajeito? De que jeito, se não me percebo?
O mundo não é preto e branco, nem em duas dimensões. O mundo não é uma tela de pintor daltônico.

Ver.
Luz que clareia o dia.
Quero ver.
Forte como o meio dia.
Encandeado, ofuscado no primeiro instante.
Maravilhado pela aurora.

Ver.
Tudo fica claro.
Não em si, mas nele.
Não posso ver o sol, mas vejo tudo por ele.
Como pude ser tão cego!
Tão voluntariamente cego.

Ver.
Delicado como o luar
Refletindo uma outra glória,
Mais distante.
O belo, o puro, o digno.
Luar.

Ver.
Triste como o ocaso.
A morte e esperança do novo dia.
Amado como o ocaso.
Promessas do que a noite trará.

Palheta das infinitas cores
Obra de arte nunca concluída
Vida.
Cada segundo revelando novos tons
Aquarela.
Cada instante vivido, puro impressionismo.
Impressionando-nos pela beleza sem igual.

Vida Bela aquarela.
Somos co-pintores dela.

TTTRRRIIIIIMMMMM!!!!!! O despertador toca. Acorda, vai escovar os dentes. Acorda. Abra seus olhos. O dia já começou.