Os Invisíveis

Quando criança ele brincava de super herói. Pé no chão de piçarra, pulava as valas abertas que levavam dejetos, num lugar que desconhecia saneamento básico. Finas perninhas tortas, barrigão tufado,uma verdadeira confraternização universal das lombrigas.

Pulava, corria, suava.Queria ser o Homem Invisível, derrotar os malfeitores, ser o símbolo da justiça. Usaria seus poderes para estabelecer o bem. Os super vilões não contavam com a sua astúcia. E seguiam-lhe os bons.

Por ironia do destino, cumpriu-se em parte seu desejo. Ele a cada dia ficava mais invisível. Ninguém notava suas ausências constantes na pequena escola que frequentava. Inicialmente, diziam que ele “não queria nada com a vida”. Mas era a fome que o impelia a ir atrás de um paliativo. Cheirava cola, fazia pequenos bicos. O mísero lucro obtido desaparecia sob os tabefes dados por sua mãe. E foi sumindo de casa também.

Hoje ninguém o vê. Passamos diariamente por ele, que nos olha pelos vidros fechados do carro, enquanto estamos fechados na nossa ignorância de nos sentirmos melhores dos que não tem nada. Sua pobreza agride por evidenciar nosso desinteresse, egoísmo e acomodação. Por isso não o vemos.

mas ele está na esquina, dormindo debaixo da marquise. Ele é aquele que nos apavora, com o medo de sermos assaltados – pois obstinadamente concluímos que miséria é sinônimo de criminalidade. A sombra de sua presença não notada é constante.

Amanhã, ele será o velho homem chorando as lágrimas do abandono. As gotas escorrem pelas rugas, e são enxugadas por sua mão sempre trêmula. Não receberá visita alguma de parente algum no seu asilo, pois não queremos o que não seja novo e belo. Suas lembranças cortarão sua alma, e ele dará graças a Deus quando elas forem embora, junto com sua lucidez.

São os invisíveis. Apagados da sociedade, enquanto consumimos.

Orei


Orei. naquele instante permiti que meu espírito se abrisse novamente. As dúvidas, que sempre carrego, levei-as comigo. Minha fé destituída de dogmas, de verdades absolutas, resume-se em confiar numa pessoa – Cristo.

Portanto, ajoelharam-se ao meu lado o medo, a angústia, a incerteza. A percepção de quanto sou pecador me deixa tímido. Não sei o que dizer ao meu Senhor. Calo-me. Descanso na Sua presença.

Há muito tempo rejeitei a eloquência das orações pré-formuladas. Não tem sentido para mim a tentativa de convencer a quem me conhece tão profundamente. Deus não é platéia de um auditório lotado. Recolho-me, fecho a porta do quarto.

Na escuridão do quarto fechado, no silêncio que precede a tempestade, deságuo minha alma como palavras. Uma a uma elas saem de mim, gaguejadas, trôpegas como eu mesmo.

O Meu lamento ecoa pelo cosmo, chega até Ele. Não, chega antes de ecoar, devido sua proximidade. Sei que estará comigo, sempre. O seu Espírito habita no casebre simples, de barro prensado. Habita em mim.

Meus joelhos doem, mas fui aliviado da sobrecarga. Levanto. Ponho o pé (que continua com espinho) de volta no caminho. E continuo caminhando.

Cenas

Já passaram-se doze anos..

Cena 01:
Tarde na sala, revirando vinis velhos, escavando boa música com a dedicação de um arqueólogo. A poeira e o mofo já nem incomodam mais, de tão habituado a eles. Descubro a boa música. Elis, Bethânia ( em especial o “Recital na Boite Barroco”), Chico, Caetano (ainda tropicalista), Jorge Ben (antes do Jor), tantos outros. A música permeia meus dias, entranha na minha pele. Eles cantam minha história, meus amores, meu ímpeto adolescente. Sou eu, metamorfoseado em versos e melodias, derramado no mundo a partir da sala da minha casa no Coqueiro.

Cena 02:
Volta pra casa. Olho pela janela do “Jibóia Branca” lotado e fedorento, enquanto o sol que reinava absoluto se esconde por trás de pesadas negras nuvens. O retorno para o lar sempre trazia consigo essa aventura, com a pontualidade britânica das águas amazônicas. Preparo-me para a corrida desenfreada para chegar em casa antes da chuva. Desço, corro, molho-me. As bainhas da calça de tergal azul tornam-se marrons da lama, a queda espreita a cada passo. Chego encharcado, ofegante, a adrenalina pulsando forte nas veias. De novo. Prometo que no outro dia levarei o guarda chuva. Nunca cumpri essa promessa.

Cena 03:
Minha varanda tem a voz do Paul MacCartney. Deitado na rede, com a perna dando o impulso que implusionam os meus sonhos, fecho os olhos para ver o futuro, negligenciando o presente. Minhas digressões fazem-me percorrer a vida, com o peito cheio de esperança, e me levam a crer que no fim tudo dará certo, mesmo sem saber como. Varanda, Beatles, rede e sonhos compõem um lindo quadro, já vivido. E perpetuaram-se no imaginário.

A Menina e o Espelho

Certa vez conheci uma menina. Vivia o processo de renascer, sem saber ao certo qual o melhor caminho a seguir. Infelizmente, a viver não tem manual de instruções.

Um espinho enterrado no peito, um sorriso constante no rosto. Combinação bela e triste, da flor brotando regada com as lágrimas da maturidade. Dor, medo, joelhos ralados pela decepção.

A menina olha pela janela, e a paisagem não é das melhores. Crescer já é difícil, e o cenário que se desenha é crescer sozinha. Ficará em casa, cuidará das próprias feridas. As vozes ao seu redor povoam seu coração com maus conselhos – igualar-se à mesquinharia das vidas vazias.

Mas ela não é assim.
Ela é mais.
Única, constrói o mundo com a beleza dos seus sonhos.
Encontra-se, reconhece-se
Ao olhar o espelho de frente.
Tira a maquiagem,
Despe-se da infância,
Contempla pela primeira vez
A extraordinária experiência de ser mulher.

Enxuga as lágrimas, respira fundo, e vai em frente. Felizmente, viver não tem manual de instruções. Tem espaço de sobra para descobertas.

Sobre Arsène Lupin

Arsène Lupin é um gato. Ganhou seu nome em homenagem à personagem de um livro de Maurice Leblanc, um ladrão de casaca, um gatuno, condizente com a malandragem de quem já nasce de bigode.

 

É curiosamente audaz, talvez por conta de sua infância compartilhada com um cachorro, habitante da mesma casa. Pêlo farto, herança de sua ascendência persa, com a monotonia preto e branca quebrada apenas pelos olhos verdes, de um verde semelhante a fundo de igarapé.

 

Desfilava pela sala com a certeza felina de que nós, humanos, existíamos para satisfazer suas vontades, como gênios da lâmpada em carne e osso. Provocador, o mini tigre tinha por passatempo passear nos muros das casas com os maiores cães, só para ver o desespero impotente dos inimigos. Não que ele fosse mau, ao contrário, tinha uma fidelidade canina (!?). O melhor companheiro para as horas tristes, com um ronronar que soava como: “está tudo bem, agora”. Uma bola de pêlos que falava com os olhos, dividindo as dores e alegrias de ser da família.

 

Ainda filhote, passou maus bocados. Uma coceira na orelha esquerda transformou-se em grave alergia ao ser tratada com andiroba, dando-lhe a aparência do Duas Caras dos quadrinhos. Miúdo, pensávamos que um camundongo lhe daria uma surra, se houvesse encontro entre ambos.

 

Mas cresceu. Em sua fase adulta era o maior e mais bonito gato da redondeza. Lamentavelmente, cada dia que passava sua personalidade assemelhava-se mais a minha. O mesmo ar blasé, o mesmo cinismo, o mesmo espírito nômade . O céu estrelado foi a única testemunha da sua partida. Por causa dos seus hábitos boêmios, demoramos a sentir sua falta – ele breve voltaria, com o ar de ressaca de quem virou anoite na orgia. Mas não voltou.

 

As semanas passaram-se sem que o vazio deixado por Arsène diminuísse. Senti raiva pela ingratidão da partida sem despedida, da falta de contato, a mesma ingratidão que cometi com meus pais. A tristeza de ter sido deixado para trás.

 

Não sei se um dia Lupin voltará. Não sei nem mesmo se ainda vive, pois já faz um ano que ele saiu de casa. As vezes alguém me diz que viu um gato parecido com ele na rua. Penso na hora: “gato filho-da-mãe!”.
Mas até hoje não consegui ter nenhum outro gato, por que esse lugar é dele. Acho que também tenho uma fidelidade canina.

 

Cotidiano

Nas tentativas de descobrir o que vale a pena, encontrei o dia-a-dia.

As vezes procuramos algo que nos impressione, algo que surpreenda pelo grandioso, e deixamos escapar o verdadeiro espetáculo da vida escondido embaixo das pedras da rua. Em cada canto, nos sorrisos descompromissados, despropositados, e por isso mesmo com propósito completo em si. Odes a alegria da viver.

Na rotina diária descobri um novo mundo. O café fumegante, nevoando os pensamentos e transportando para outras dimensões. Cochilar no sofá de casa, sabendo que tudo está bem. Conversar, entremeando concepções de mundo, entrelaçando as mentes e resolvendo os destinos da humanidade. Os grandes mistérios do universo resolvidos pelo humor irresponsável dos meus amigos, com direitos a gargalhadas que ecoam pelo cosmo e atestam que somos nós que (re)construímos o chão que pisamos.

Achei o extraordinário. Ele sempre esteve ao alcance das nossas mãos. Basta fechar os olhos e abrir a alma.

Negro Encontro

Em 1987, quando o “Negro Encontro” foi lançado, eu tinha 07 anos. Não sei bem quantas vezes o li e reli, pois a sua escrita forte, pulsante, sempre me atraía. A simbiose de prosa e verso permeando-se mutuamente, dava novos sentidos para as palavras, transmutando-as em algo a mais, algo captado apenas pela sensibilidade. Se hoje escrevo, não é porque quero, mas por estar nos genes. E sinto um prazer pueril quando, agora adulto, alguns amigos me chamam de Negão, da mesma forma que chamo o meu velho.
A saudade que carrego desde que saí de casa, muito cedo, é a certeza do meu amor pelo Negão Pai, Matão, dando sentido completo em embandeirar o Filho do meu nome.

“Pois me beijaram a boca e me tornei poeta
Mas tão habituado com o adverso
Eu temo se um dia me machuca o verso
E o meu medo maior é o espelho se quebrar.” (Espelho – João Nogueira)

EPÍSTOLA UNIVERSAL DO NEGRO TU

“Eu sou aquele, daqueles habitantes de um mundo paralelo nascido na mente, da pele escurecida que tanto pavor lhe causa. Aquele que, provavelmente hoje mesmo , você encontrou na sarjeta e, qual Pilatos, utilizou mais uma vez o vaso sanitário.
Sabe ?! eu sou esse mesmo que você “aceita” sem se comprometer. Essa negação de cor que, das trevas, você estereotipa como indesejável. Esse mesmo , que sujará sua raça se deflorar sua filha e que já nasceu tendo de provar que é melhor (?!…)
Eu sou aquele, isso e esse mesmo que “carinhosamente” você chama de negrinho. Sabe ?! o trombadinha que você contribuiu para que eu fosse. Esse que suja sua consciência (sic), por se parecer muito com aquela “pretinha”, que seu sêmen emporcalhou, agorinha mesmo, na cozinha de sua casa.
Sou eu, aquele mesmo, que teve de engolir os seus deuses e engulhar suas verdades como se fossem minhas, no total desrespeito que sempre caracterizou as nossas “relações”.
Sou, lembra-se ?!, aquele passageiro dos porões do navio negreiro, que você trouxe para construir esta nação. A força bruta, a tração, que lhe impulsionou a desonestidade e o transformou em senhor. Sou eu mesmo, aquele soberano africano, escravo do marginal europeu que a avareza despejou nos mares.
Eu sou aquele, marcado pelo chicote do analfabetismo, que você finge amar quando necessário. Aquele “pardo” de “alma branca”, que é o “negro mais branco do Brasil”. Aquele mesmo que “suja na saída” e que “é negro, mas… é bom”.
Eu sou tudo isso, que você me fez, e não há retrocesso. Mesmo porque as feridas na alma cicatrizam com maior dificuldade que as marcas das chibatadas, que você me deu. Por isso, jamais haverá retrocesso nesse desamor implantado por você em minha negritude.Jamais retrocederei ao ventre-livre, que a sua eterna hipocrisia me presenteou. E, muito mais ainda, jamais precisarei das suas “leis áureas” ofuscantes para ser realmente livre.
Eu sou tudo isso e muito mais, que a estreiteza de sua visão é incapaz de alcançar. Sou eu mesmo, aquele que traz Palmares no peito e toda a lição de liberdade do negro Ganga Zumba. Aquele mesmo que não acredita na sua aparência de branco, porque aprendeu com os mestres astrais, cultuados na minha “ignorância espiritual”, que tudo no mundo visível em que vivemos é uma interligação precisa e harmoniosa de forças, não existindo por si mesmo. Sabe ?! a minha, a sua, a nossa cor não existe além de nossas próprias limitações de homens. A sua, a minha, a nossa superioridade não se sustenta além das três dimensões a que estamos aprisionados. A própria dualidade, tão necessária para nosso equilíbrio , é a Unidade Suprema no zero absoluto.
Eu sou aquele e a mim basta sê-lo. O negro TU, apóstolo de minhas próprias verdades. O guardião do templo de minha negritude. O mais-que-imperfeito ser sem ser mentalmente divino. Um ser poeta, perfeito na sua imperfeição. Um deus-homem, um homem-deus, um ser-menino.”

Alcir Matos (o pai).

Aos 29

(Reflexões no dia do meu 29º aniversário)

Construí um edifício de 29 andares.
Tijolo por tijolo,
Virando massa,
Carregando entulho.

A planta inicial se perdeu no caminho:
Não reconheço o resultado…
Não foi o esperado.

Fiz andares com material péssimo.
O subsolo é tão profundo quanto sombrio.
Mas tal qual o “Menino Maluquinho”
Ainda tenho macaquinhos no sótão.

No início
Era uma casa muito engraçada…
Hoje
Transformada com o tempo.
Tenho portas, que permanecem trancadas.
Não tenho teto, eu não perderia a Lua.

É difícil.
Eu, difícil.
Edifício.

Sinto vergonha pelas cisternas rotas.
Tem pedidos de perdão que nunca fiz.
Mágoas que continuam sufocadas.
O choro engolido, desde sempre,
Permanece na garganta.

Mesmo assim, gosto do que fiz de mim.
Talvez pudesse ser melhor.
Ou pior. Quem sabe?

Porém deixei o Sol entrar.
Sem arestas, ou limites.
Iluminando tijolo por tijolo
Secando a massa.
O material é péssimo.
Mas o todo glorifica a Deus

(e continua muito engraçado…).

http://www.youtube.com/watch?v=ipjly96rzxA 

“Eu, Belém F., 393 anos, drogada e prostituída”.

Ontem vi em um telejornal a inacreditável notícia que o Pará vai começar a enviar seus pacientes com câncer para o Tocantins e Piauí, por conta do total sucateamento do hospital Ofir Loyola.

Fui imediatamente tomado por uma raiva profunda. Senti-me ultrajado, envergonhado, por que o meu Estado chegou a este ponto, tendo que ser socorrido por dois dos mais pobres da Federação. E pela falta de entendimento minimamente racional que pacientes com câncer não tem tempo a perder com a maratona burocrática que terão que passar para serem transferidos.

Descaso, corrupção, incompetência, falta de políticas públicas eficazes. O governo, em todas as esferas, é visto e usado como cabide de emprego. Pessoas sem capacidade de gerir um mercadinho são colocadas em cargos de confiança por conta dos votos que podem arrebanhar. Meia dúzia de pessoas comandando o desmando paraense.

Ainda lembro-me da época em que nutria esperanças políticas. Da época em que atual governadora era tida como alternativa no cenário político. Mas desde que assumiu o mandato, só repercutem os escândalos da sua administração.

Quanto à prefeitura de Belém, não tenho nem adjetivos para expressar o que penso sobre Duciomar Costa. O “Dudu” ser prefeito é algo parecido com roteiro de filme do Zé do Caixão.

A situação da minha cidade pode ser descrita parafraseando o título de um livro: “Eu, Belém F., 393 anos, drogada e prostituída.”. Drogada, dopada, sem condições de reagir à violência que a acomete diariamente. Prostituída, usada para satisfazer o prazer daqueles que a comandam.

Não quero a “Belém F.”. Quero a Santa Maria de Belém do Grão Pará, bela, rica, efervescente, cultural; quero a minha raiz. Estou há seis anos e nove meses longe dela, só a vejo em rápidas visitas. Como todo paraense, sei do nosso bairrismo, e sei os motivos (justos) para isso. Mas hoje, me envergonho de sê-lo.

Ela Existe

Eu amo.
Lutando contra a minha velhice precoce.
Contra as marcas e rugas da alma.

Eu amo.
Meio sem jeito,
Meio distante,
Mesmo isolado.
Sou náufrago em mim.

Eu amo.
A musa ainda sussurra.
É ela
Quem traz para vida as odes
Quem traz para o mundo as cores.

Por ela respiro, e em mim ela existe.