Sobre a questão do aborto – Resposta prof Márcia Tiburi

Feto com 12 semanas

Feto com 12 semanas

Em uma sessão do CDH – Comissão dos Direitos Humanos – realizado em 06 de agosto, houve uma fala da professora Márcia Tiburi sobre a questão do aborto.  O que me chamou a atenção foi o fato da referida professora ser da Universidade Presbiteriana Mackenzie, e defender a legalização do aborto – posição que normalmente não é endossada pelos cristãos, nem católicos, nem reformados.  O único que já vi se posicionar a favor do aborto é o sr. Edir Macedo, mas o mesmo para ser categorizado como cristão tá é difícil. A UPM já se posicionou em nota afirmando que é totalmente contra à legalização do aborto, porém a referida professora fez questão de vincular o nome da Mackenzie.

Pois bem, o vídeo disponibilizado pela Tv Senado, tem 13 minutos, e raramente se poderia tratar desde assunto tão levianamente.  Para dar ampla voz ao debate, vou colocar o link e após analisar os argumentos apresentados. Os argumentos da professora Márcia estarão em itálico, são a síntese, não a anotação ipsi litteris.  No final, apresentarei a conclusão.

“Há fatores político-econômicos em jogo com os quais riscamos com o giz da demagogia um círculo cínico em torno do problema do aborto”.

A tentativa da sra. Márcia, que veremos em toda sua fala, é desviar o foco objetivo do problema do aborto.  Vou tratar da questão do “círculo cínico”  mais abaixo, porém quero logo ressaltar que quando se trata do tema aborto de modo específico, fica difícil de apresentar defesa à legalização. De modo específico: trata-se de duas pessoas, a gestante e o bebê, unidas em um vínculo de dependência unilateral – o bebê depende da gestante para sua sobrevivência, e a gestante não depende do bebê.

E a questão fundamental é: é lícito para a mãe interromper este vínculo?  Em que casos seria? Por que o bebê só pode ser considerado gente depois do parto?

Podemos até, em segunda instância analisar se de fato existem fatores político-econômicos, porém apenas após de resolver o que é fundamental. E o fundamental aqui é que tratarmos sobre duas pessoas, igualmente vivas, e como igual direito de permanecerem assim.

“Julgamentos morais cruéis contra mulheres transformam o aborto em metáfora do mal”

Na realidade, o aborto não é uma metáfora do mal. É um mal.  Um  mal terrível para todos os envolvidos.  Conheci algumas pessoas que em um momento de desespero se submeteram ao aborto, e que carregam uma dor profunda no coração.  Não é um julgamento moral, é uma violência contra a mulher e contra o bebê, principalmente  contra este, pois acarreta a sua morte.  Não podemos cair no erro de transformar em um conceito abstrato um mal concreto.

Não penso que as mulheres que abortaram sejam pessoas necessariamente vis. Penso que no geral são mulheres em momento de desespero, que cometem um erro terrível. Mas esse erro terrível é impulsionado pelo discurso pró-aborto, pois abre a possibilidade da normatização teórica de um fato real, e na esfera da realidade não é vivenciado sem um profundo sofrimento.

“Máquina destrutiva do lugar das mulheres, alteridade, autonomia sobre suas vidas e corpos, uma máquina que funciona contra o desejo e as necessidades das mulheres quando se trata de gestação, maternidade, saúde emocional, física e social”.

Nenhuma destas questões estão em pauta na discussão sobre a legalização do aborto. O papel social da mulher não está em questão. A maternidade é um escolha. A mulher tem total autonomia sobre sua vida e corpo, e a solidificação deste direito, por mais que seja necessária, não encontra na discussão sobre o aborto o fórum correto.

A discussão sobre o aborto gira em torno da vida do outro. Quando a mulher já está “preparando outra pessoa”*, não dá para simplesmente  desconsidera-la como indivíduo.  Não é uma lombriga, é uma pessoa!

Toda mulher precisa de ter suas necessidades totalmente atendidas quanto a gestação, maternidade, saúde, emocional, física e social.  Ela deve ser totalmente realizada e cônscia de sua vida, e de fato decidir como e se terá filhos.  Mas a consequência natural de todo indivíduo moralmente responsável, é ser responsável por suas decisões. Esse é o tipo ideal.

“O direito de decidir, pois de fato, já decidimos a milênios“.

Neste momento, a sra. Márcia argumenta que é uma prática milenar, tentando validar através da prática. É um argumento, na melhor das hipóteses, infantil, pois posso citar inúmeras práticas que ocorrem a milhares anos, e continuaram ocorrendo diariamente, nem que por isso se tornem aceitáveis.

A milhares de anos ocorrem estupros, violência contra a mulher, latrocínios, homicídios. Aparentemente continuarão ocorrendo.  Isso os tornaria lícitos?

 “É obrigada a optar pelo aborto em condições clandestinas, ilegais e inseguras”.

Se a gestante for OBRIGADA a optar pelo aborto, é um crime terrível.  Mas normalmente, ou melhor, a milênios, como afirma a filosofa, a decisão é da mulher. Palavra-chave: decisão.  Não seria este o direito desejado? Por que, subitamente passa de decisão para imposição de modo arbitrário?

A melhor solução para a situação de desespero é a esperança, até mesmo etimologicamente.

“Círculo Cínico da estrutura social machista, formado por um enganador e um enganado, onde uns fingem não abortar e outros falam contra o aborto”.

Aqui a sra. Márcia pressupõe que toda mulher aborta, ou abortou, e generaliza englobando toda faixa etária, classe social e credo.  Absolutamente arbitrário. Mesma fonte de pesquisas “lulistas”, a fantasia.

Ela, no seu “círculo cínico” ela desconsidera totalmente a possibilidade da mulher, “vitimada em uma estrutura machista”, não abortar, nem querer fazê-lo.  É de um reducionismo ridículo.

“Lucro moral por meio do discurso contra o aborto”.

O suposto “lucro moral” que se obtêm a partir da fala anti-abortista, também carece de sustentação fundamental. A questão é de premissas. Caso se considere que o aborto é um crime, dizer que o é não gera o tal “lucro moral” – é somente a exposição de um fato. Caso não se considere, e o mesmo seja visto como uma prática de saúde pública, assim como a vacina contra o sarampo, não gerará o tal “lucro moral”.  A definição disto é a conclusão do debate, não o início dele.

O que ela comete é a falácia da petição de princípio. Tenho que, a priori, considerar a conclusão dela como uma premissa válida. Mas a premissa válida é a já existente. Aborto é crime. E mais que uma premissa, é a legislação.  E dizer que um crime é crime é ser apenas óbvio.

As que falam que fazem, negam a estrutura cínica e são tratadas como imorais.”

As que falam que fazem saíram do campo das ideias.  Posso argumentar sobre a legitimidade de uma série de coisas, mas enquanto não houver essa legitimidade, não posso fazê-las.  Posso por exemplo (caso eu fosse marxista) argumentar contra a legitimidade da propriedade privada. Mas se eu tentasse “expropriar” algum burguês para apoiar meu argumento, a única coisa que conseguira é ser preso por roubo.

“Resta-nos o pseudo-debate … descartar a voz, a felicidade, o desejo das mulheres e por fim levar as mulheres pobres  a morte. Fácil criminalizá-las, fácil matá-las. Fácil para o Estado não se responsabilizar por esta pena de morte contra mulheres pobres.”

Aqui chegamos a um coitadismo profundo.  Essa sequência de fatos é absolutamente aleatória. O único dado que podemos afirmar nos casos de aborto, é que caso seja bem sucedido 100% dos bebês morrem. E as vezes o aborto mal sucedido deixa sequelas para o resto da vida, tanto do bebê quanto da mãe.

O percentual de mulheres que morrem ao tentar o aborto é ignorado, pelo fato óbvio do mesmo ser clandestino. Algumas morrem? Provavelmente sim. A culpa disso é do Estado? Absolutamente não.

Curioso é que o argumento para validar o aborto passa a ser o econômico. Mulheres pobres não podem ter filhos, pois não teriam condição de criá-los. Solução: A morte dos pobrezinhos. Observem para este fato: o fator pobreza, como impedimento ao direito à vida. É a morte em massa dos pobres e negros, 50% deles mulheres, que está sendo defendido pelos grupos que se dizem defender o pobre, o negro e a mulher.

Essa visão distorcida do direito e valor da vida tem ecos terríveis ao longo da história.  É o racionalismo estrito que fazia com que espartanos matassem os filhos que nascessem com qualquer defeito congênito, pois não se adequariam à guerra; que faz com que ocorra o infanticídio em comunidades indígenas brasileiras; e que gerou a limpeza étnica nazista.

Antes que distorçam o meu argumento, reitero: Não estou afirmando que mulheres que abortam são necessariamente nazistas, estou afirmando que a limpeza étnica nazista teve como condição filosófica a visão distorcida do direito e valor da vida. E que, ao se legalizar o aborto, estamos dando um passo na direção de uma “limpeza étnica/social tupiniquim”, uma vez que o alvo será o pobre e negro, sendo 50% deles, mulheres.

Falácias do discurso cínico:

Vamos analisá-los, individualmente.

a) Falácia da Ordem do Discurso:  tema se trata da legalização do aborto, e não do aborto. Falácia de cunho moralizante.

Aqui é mero desvio de foco. A própria sra. Márcia Tiburi afirma que ninguém é a favor do aborto, penso que por ela mesma perceber que o aborto é um mal em si mesmo, independente de qualquer outro juízo de valor.  Se a mesma tivesse afirmado com defensora do aborto, seria uma posição mais coerente, pois ela estaria dizendo que o problema do aborto não é um mal em si mesmo, mas apenas uma questão de saúde da mulher.

Mas, se o aborto não conseguem ser legitimado como algo bom, por que seria como legitimado algo válido? E  Se nem quem defende a legalização do aborto consegue dizer que o aborto é algo bom, por que ainda estamos nesta discussão?

A legalidade civil é precedida pela legalidade moral, sempre. Se algo é percebido do moralmente válido, a tendência é se tornar legalmente válido.  As leis nasceram desta maneira, validando o que já era moralmente aceito.

b) Falácia do Apelo à autoridade:

Não é uma argumento válido, pois não estamos nos apoiando na autoridade, e sim analisando fatos. Como protestante, minha fonte autoritativa é a Escritura, mas em momento algum estou me valendo dela para desconstruir as bobagens ditas pelas dra. Márcia.

c) Falácia do Apelo Amor aos Filhos: sentimento é subjetivo.

O sentimento por mais que seja subjetivo, sua expressão é objetiva. E através desta manifestação externa e objetiva, pode-se inferir o subjetivo. Se não pudéssemos fazer isso, não poderíamos viver de modo coerente.

Por exemplo, eu dizer que amo meu filho implica que eu objetivamente me esforçarei para ser um bom pai, que não deixarei ele sem cuidados. Se eu digo que amo o meu filho, o vejo morrendo de fome e não faço nada, o meu comportamento objetivo não está alinhado com o meu sentimento subjetivo.

d) Falácia do Apelo à Mulher Inconsequente: a mulher engravida por que fez sexo.

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA

É realmente um falácia, pois é mundialmente sabido que é a cegonha que traz os bebês.  Ou era uma semente de melancia que a mamãe engoliu? Puxa, agora fiquei confuso…

Mas o que é 100% certo é que na história da humanidade NENHUMA mulher engravidou por que fez sexo.

e) Falácia do Apelo à Natureza: o que é natural é bom, e o artificial é ruim.

Não se aplica, pois vários setores que são contrários ao aborto defendem os métodos contraceptivos e o planejamento familiar.  Acho que somente a ICAR que se posiciona contra.

f) Falácia maternalista: mãe desnaturada.

Não se aplica, pois para ser mãe é necessário que haja o filho. O aborto nega a possibilidade de existência ao filho. Logo, a que aborta não pode ser entendida como mãe.

g) Falácia apelo ao valor da vida / assassinato de inocentes / vida do embrião: Desproporção, pois trata o corpo da mulher como uma vida menor que a vida do embrião, e trata a mulher como mera  hospedeira, destrata a mulher como ser de direitos.

Essa foi a pior de todas. É muito bom travar debates assim, em vez de lidar com o argumento da parte contrária, colocar a pecha de “falácia” e sair cantando vitória.  Por que argumentar que o bebê é um ser vivo, inocente e indefeso seria falácia? Não, de forma alguma, é fato científico.

Isso é uma piada de mal gosto. A piada anterior ao menos foi engraçada. Esta é uma fuga covarde do ponto central do debate.

O ônus da prova cabe aos proponentes pró-aborto. Provem que um feto de 12 semanas não é uma pessoinha. As provas abundantes são do lado pró-vida. Uma rápida “googlada” é suficiente.

h) Falácia do Não Pertencimento:  são as religiosas; arrependimento, destino, sofrimento a ser encarado, perda do reino de Deus após a morte. Se propõe universais, mas ocultam que as crenças não são universais e que o Estado brasileiro é laico.

A tentativa de enquadrar a cosmovisão cristã/ religiosa como uma falácia, com o argumento que o Estado é laico é ridícula. A laicidade do Estado é justamente o que permite que os cidadãos cristãos sejam respeitados como cidadãos, e serem atores sociais. A dificuldade das pessoas é não entender algo simples: Estado laico NÃO significa Estado Ateu. Significa que o Estado terá como premissa respeitar pluralidade de fé dos cidadãos, em suas mais variadas matizes, e todos tem direito a voz e voto. Sua representatividade será democraticamente espelhada, e os direcionamentos serão com base na melhor interesse da maioria.

Lamentavelmente para os abortistas, o Brasil é, em sua maioria esmagadora, cristão. Por que eu tenho que abrir mão do meu direito de cidadão, somente porque expresso uma fé, e esta por sinal é da maior parte dos brasileiros? Não tem o menor sentido esta proposição.

E aqui, de novo, a dra. Márcia comete a falácia de Petição de Princípio: Ela acredita que as crenças não são universais, e por isso quer usar esta conclusão como premissa. O problema é que as crenças são universais. Os princípios morais fundamentais são os mesmos em TODAS AS CULTURAS, por mais que posso haver variações em questões menores. O indivíduo assassinar a própria mãe é errado, e esta é uma crença universal. Sem a força de um valor moral universal, perde-se todo sentido ético, pois resta o que é bom pra mim, de acordo com minha subjetividade. Logo, se uma sociedade chegar a conclusão que para o seu bem precisa ampliar o “espaço vital“,  torna-se legítimo a invasão e dominação de povos menos desenvolvidos.  Sem valores e crenças universais o nazismo é moralmente válido.

Tema aborto é bio-político.

Não. É bio.  O ponto central continua sendo pura e simplesmente direito à vida.

 Afirmar o aborto como assassinato em vez de olhar para a necessidade de sua legalização como questão de saúde pública, ou de liberdade feminina é falta de respeito.

Estamos esbarrando no problema central, ignorado deliberadamente pela dra. Márcia Tiburi. É impossível não olhar a questão do aborto como assassinato, sem antes delimitar a vida do feto. A vida começa na concepção. A partir desta perspectiva, tirar a vida será matar um inocente.

Qualquer outra perspectiva, terá como implicação uma desconstrução do entendimento do que é o ser humano.  Se argumentar-se que a definição do ser humano é a partir de existência de alguns órgãos ou membros, implicaria necessariamente que pessoas com necessidades especiais seriam sub-humanos.  Ridículo. Isso sim é falta de respeito com a dignidade humana.

Angariar adeptos a causas autoritárias de modo geral no âmbito do senso comum… Interesse em ganhar votos, dízimos e o consumo em geral.

Falácia ad hominem, que consiste em atacar o indivíduo para tentar desacreditar as afirmações deste.  Citando a própria Márcia, é a tentativa de ganhar a discussão sem apresentar argumentos consistentes.

E uma falácia burra, pois na realidade, ao nos posicionarmos contra o aborto, perdemos adeptos, votos e dízimos, pois restringimos a quantidade de pessoas que poderíamos “cooptar”.  Os “discursos de ódio conservadores” que os “sacerdotes da moral vociferam” não seriam a melhor forma de agir em uma sociedade adepta do subjetivismo, relativismo, liberalismo.

Conclusão:

Não existem argumentos consistentes na fala da dra. Márcia. É somente uma cortina de fumaça para encobrir a verdadeira questão: e os bebês?

Dentro da questão principal, penso que a legislação não precisa de retoques. É direito abortar em casos de bebês anencéfalos, estupro e risco à vida da gestante. Isso resguarda plenamente o direito da mulher aos seu corpo e vida, sua alteridade.

Gostaria agora de  me dirigir de forma específica para algumas mulheres, que possam estar vivenciando esta questão de perto, na própria existência. Disse que logo no início que o tema não é abstrato, mas real e concreto.

Por isso preciso falar algo para as mulheres que pensam em fazer aborto:

Não façam. Por mais que tenhamos preocupações, válidas, com o futuro, o amanhã sempre reserva boas surpresas. Vai ser difícil, sem dúvida. Mas dificuldade é justificativa para tirar a vida de outro? Se você colocar a mão na sua barriga, e entender que é o seu bebê que está aí, você não vai cometer o aborto.

Para as mulheres que já fizeram aborto:

Eu não tenho como dimensionar o tamanho do desespero que te levou a isto. Sinto muito que tenhas passado pelo que passaste. Oro para que o Espírito de Deus possa te consolar do sofrimento. Isto não diminuiu o amor de Deus por você.  Em Cristo, sempre temos perdão, reconciliação com Deus e com nós mesmos, ao nosso alcance através do arrependimento e fé.  E, citando-O: Vá, e não peques mais**.

“Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis; e, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo”. – 1 Jo 2.1

*trecho da música “Força Estranha”, de Caetano Veloso
** Evangelho segundo João:8.10

O que sobrou do Golpe de 64?

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Dia 31 de março completamos 50 anos do Golpe Militar que inciou um ciclo de 21 anos de ditadura. Mas, entre discurso inflamados, viúvas da ditadura, palavras de ordem estúpidas, o que restou para nós?

Sempre que ouço comentários sobre o período, os saudosistas pintam um cenário aquém da realidade.  “Queria ver no tempo dos militares, esses malandros …” e nas reticências o sentimento de ordem e paz pública, que  sufoca a verdadeira ordem, aquela em que não é necessário suprimir os direitos civis, as liberdades individuais. “Paz sem voz não é paz, é medo“*.

A ideia que se quer passar é que naquele momento histórico tudo ia bem: os pobres não eram tão pobres, as escolas não eram tão ruins, os bandidos não eram tão maus. Em que se pese que existe um senso comum que o ensino em geral tem retrocedido,  a definição mais exata deste discurso é o anacronismo**.

Por outro lado sempre que eu penso sobre luta contra Regime Militar, percebo a profundidade da sentença: “Ou você morre herói, ou vive o suficiente para se tornar o vilão”***.  Existiu uma geração engajada, que (não estou levando em consideração o mérito da questão) acreditava que podiam fazer a diferença. Eles acreditavam em mudança política, em formas de governo que beneficiariam o povo.  Porém, em sua maioria, tornaram cínicos manipuladores, usufruindo das benesses do poder, e enriquecendo ilicitamente.

genonio

Tenho nojo dos “Genoínos” e afins, que começaram na guerrilha e terminaram na quadrilha. Tenho nojo da
caricatura que se tornaram, com o punho levantado e capinha de super heróis as costas, esquecendo-se que o principal adorno do homem é a vergonha na cara, esta definitivamente sumida.

Veja bem, minha bronca não é somente com o Genoíno, é com toda a geração revolucionária da sua época****, que hoje mantém o discurso de esquerda para iludir o eleitorado, enquanto fica “em casa, guardada por Deus (sic), contando vil metal“*****. Da esquerda brasileira, nos sobrou a frase feita, a palavra de ordem,  a conversa pra boi dormir, e uma teoria social sem a menor aplicação prática. 

A consequência  é a pior possível. Estamos em meio a uma esquerda falida, uns jovens imbecis metidos a revolucionários, tipo anonymous e black bostas, ops, black blocs, e uma direita que insiste em absorver o pior do capitalismo. A ignorância social e política chega a índices “australopitéticos”.

Enfim, o que restou do Golpe de 64 foi cinismo e desilusão.  A falha em qualquer sistema político é que ele  teima em resolver o problema social, mas esquece de resolver o problema do homem.  O ser humano é mau, pecador, egoísta, portanto preso ao pecado e ao sistema mundano. Como pode este mesmo ser humano produzir uma sociedade justa e igualitária antes de ter sido transformado em sua estrutura básica?  Ora, se eu sou mau e egoísta, o que se pode esperar da minha ação em sociedade? Óbvio que irei tomar a coisa pública para benefício privado.

Talvez você pense que estou errado neste ponto, mas basta olhar a história humana. Esta perspectiva mais ampla prova a verdade do pressuposto cristão – Todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus.  Por isso é necessário nascer de novo.

No fim, o que me restou do Golpe, e do posterior desenrolar da nossa história, é a esperança em Cristo. No homem e nos seus modelos, definitivamente, não dá.

 

*Trecho da canção “Minha Alma”, do Rappa

** Anacronismo é basicamente utilizar conceitos e contextos de uma determinada época em outra. Para saber mais, click AQUI.

***Frase icônica do filme Batman – o Cavaleiro das Trevas

**** Óbvio que existem exceções, e pessoas que ainda conseguem manter a integridade e o idealismo, como o meu pai, Alcir Matos. Mas são raridades.

***** Trecho adaptado da canção “Como nossos pais”, de Belchior

Os Invisíveis

Quando criança ele brincava de super herói. Pé no chão de piçarra, pulava as valas abertas que levavam dejetos, num lugar que desconhecia saneamento básico. Finas perninhas tortas, barrigão tufado,uma verdadeira confraternização universal das lombrigas.

Pulava, corria, suava.Queria ser o Homem Invisível, derrotar os malfeitores, ser o símbolo da justiça. Usaria seus poderes para estabelecer o bem. Os super vilões não contavam com a sua astúcia. E seguiam-lhe os bons.

Por ironia do destino, cumpriu-se em parte seu desejo. Ele a cada dia ficava mais invisível. Ninguém notava suas ausências constantes na pequena escola que frequentava. Inicialmente, diziam que ele “não queria nada com a vida”. Mas era a fome que o impelia a ir atrás de um paliativo. Cheirava cola, fazia pequenos bicos. O mísero lucro obtido desaparecia sob os tabefes dados por sua mãe. E foi sumindo de casa também.

Hoje ninguém o vê. Passamos diariamente por ele, que nos olha pelos vidros fechados do carro, enquanto estamos fechados na nossa ignorância de nos sentirmos melhores dos que não tem nada. Sua pobreza agride por evidenciar nosso desinteresse, egoísmo e acomodação. Por isso não o vemos.

mas ele está na esquina, dormindo debaixo da marquise. Ele é aquele que nos apavora, com o medo de sermos assaltados – pois obstinadamente concluímos que miséria é sinônimo de criminalidade. A sombra de sua presença não notada é constante.

Amanhã, ele será o velho homem chorando as lágrimas do abandono. As gotas escorrem pelas rugas, e são enxugadas por sua mão sempre trêmula. Não receberá visita alguma de parente algum no seu asilo, pois não queremos o que não seja novo e belo. Suas lembranças cortarão sua alma, e ele dará graças a Deus quando elas forem embora, junto com sua lucidez.

São os invisíveis. Apagados da sociedade, enquanto consumimos.

Negro Encontro

Em 1987, quando o “Negro Encontro” foi lançado, eu tinha 07 anos. Não sei bem quantas vezes o li e reli, pois a sua escrita forte, pulsante, sempre me atraía. A simbiose de prosa e verso permeando-se mutuamente, dava novos sentidos para as palavras, transmutando-as em algo a mais, algo captado apenas pela sensibilidade. Se hoje escrevo, não é porque quero, mas por estar nos genes. E sinto um prazer pueril quando, agora adulto, alguns amigos me chamam de Negão, da mesma forma que chamo o meu velho.
A saudade que carrego desde que saí de casa, muito cedo, é a certeza do meu amor pelo Negão Pai, Matão, dando sentido completo em embandeirar o Filho do meu nome.

“Pois me beijaram a boca e me tornei poeta
Mas tão habituado com o adverso
Eu temo se um dia me machuca o verso
E o meu medo maior é o espelho se quebrar.” (Espelho – João Nogueira)

EPÍSTOLA UNIVERSAL DO NEGRO TU

“Eu sou aquele, daqueles habitantes de um mundo paralelo nascido na mente, da pele escurecida que tanto pavor lhe causa. Aquele que, provavelmente hoje mesmo , você encontrou na sarjeta e, qual Pilatos, utilizou mais uma vez o vaso sanitário.
Sabe ?! eu sou esse mesmo que você “aceita” sem se comprometer. Essa negação de cor que, das trevas, você estereotipa como indesejável. Esse mesmo , que sujará sua raça se deflorar sua filha e que já nasceu tendo de provar que é melhor (?!…)
Eu sou aquele, isso e esse mesmo que “carinhosamente” você chama de negrinho. Sabe ?! o trombadinha que você contribuiu para que eu fosse. Esse que suja sua consciência (sic), por se parecer muito com aquela “pretinha”, que seu sêmen emporcalhou, agorinha mesmo, na cozinha de sua casa.
Sou eu, aquele mesmo, que teve de engolir os seus deuses e engulhar suas verdades como se fossem minhas, no total desrespeito que sempre caracterizou as nossas “relações”.
Sou, lembra-se ?!, aquele passageiro dos porões do navio negreiro, que você trouxe para construir esta nação. A força bruta, a tração, que lhe impulsionou a desonestidade e o transformou em senhor. Sou eu mesmo, aquele soberano africano, escravo do marginal europeu que a avareza despejou nos mares.
Eu sou aquele, marcado pelo chicote do analfabetismo, que você finge amar quando necessário. Aquele “pardo” de “alma branca”, que é o “negro mais branco do Brasil”. Aquele mesmo que “suja na saída” e que “é negro, mas… é bom”.
Eu sou tudo isso, que você me fez, e não há retrocesso. Mesmo porque as feridas na alma cicatrizam com maior dificuldade que as marcas das chibatadas, que você me deu. Por isso, jamais haverá retrocesso nesse desamor implantado por você em minha negritude.Jamais retrocederei ao ventre-livre, que a sua eterna hipocrisia me presenteou. E, muito mais ainda, jamais precisarei das suas “leis áureas” ofuscantes para ser realmente livre.
Eu sou tudo isso e muito mais, que a estreiteza de sua visão é incapaz de alcançar. Sou eu mesmo, aquele que traz Palmares no peito e toda a lição de liberdade do negro Ganga Zumba. Aquele mesmo que não acredita na sua aparência de branco, porque aprendeu com os mestres astrais, cultuados na minha “ignorância espiritual”, que tudo no mundo visível em que vivemos é uma interligação precisa e harmoniosa de forças, não existindo por si mesmo. Sabe ?! a minha, a sua, a nossa cor não existe além de nossas próprias limitações de homens. A sua, a minha, a nossa superioridade não se sustenta além das três dimensões a que estamos aprisionados. A própria dualidade, tão necessária para nosso equilíbrio , é a Unidade Suprema no zero absoluto.
Eu sou aquele e a mim basta sê-lo. O negro TU, apóstolo de minhas próprias verdades. O guardião do templo de minha negritude. O mais-que-imperfeito ser sem ser mentalmente divino. Um ser poeta, perfeito na sua imperfeição. Um deus-homem, um homem-deus, um ser-menino.”

Alcir Matos (o pai).

“Eu, Belém F., 393 anos, drogada e prostituída”.

Ontem vi em um telejornal a inacreditável notícia que o Pará vai começar a enviar seus pacientes com câncer para o Tocantins e Piauí, por conta do total sucateamento do hospital Ofir Loyola.

Fui imediatamente tomado por uma raiva profunda. Senti-me ultrajado, envergonhado, por que o meu Estado chegou a este ponto, tendo que ser socorrido por dois dos mais pobres da Federação. E pela falta de entendimento minimamente racional que pacientes com câncer não tem tempo a perder com a maratona burocrática que terão que passar para serem transferidos.

Descaso, corrupção, incompetência, falta de políticas públicas eficazes. O governo, em todas as esferas, é visto e usado como cabide de emprego. Pessoas sem capacidade de gerir um mercadinho são colocadas em cargos de confiança por conta dos votos que podem arrebanhar. Meia dúzia de pessoas comandando o desmando paraense.

Ainda lembro-me da época em que nutria esperanças políticas. Da época em que atual governadora era tida como alternativa no cenário político. Mas desde que assumiu o mandato, só repercutem os escândalos da sua administração.

Quanto à prefeitura de Belém, não tenho nem adjetivos para expressar o que penso sobre Duciomar Costa. O “Dudu” ser prefeito é algo parecido com roteiro de filme do Zé do Caixão.

A situação da minha cidade pode ser descrita parafraseando o título de um livro: “Eu, Belém F., 393 anos, drogada e prostituída.”. Drogada, dopada, sem condições de reagir à violência que a acomete diariamente. Prostituída, usada para satisfazer o prazer daqueles que a comandam.

Não quero a “Belém F.”. Quero a Santa Maria de Belém do Grão Pará, bela, rica, efervescente, cultural; quero a minha raiz. Estou há seis anos e nove meses longe dela, só a vejo em rápidas visitas. Como todo paraense, sei do nosso bairrismo, e sei os motivos (justos) para isso. Mas hoje, me envergonho de sê-lo.