Caminhante da Vida

Um caminhante parte em direção ao nada. Não lembra o porque, nem como começou. Quando deu-se conta, caminhava, com seu pés movendo-se como que por vontade própria.

Assim ia, impulsionado pelo seu impulso de seguir sem rumo.

Passo a passo retorna também a lembrança. Nublada, ainda. Teria algum sentido o seu andar? Uma saudade comprime-lhe o peito, saudades do que ainda não é. Impacienta-se, chuta as pedras do caminho, pelo simples prazer de derramar a raiva e pelo mero prazer de arrebentar o próprio dedão.  Agora é sangue, poeira, pedra e dentes trancados.  Pra onde? Por que não pára? O que, afinal, ele está fazendo? Agora é vazio, impotência, calçada e sangue.  Resolve se distrair no caminho, tentativa de esconder a frustração   e enganar-se  um pouquinho, só mais um pouquinho.

Um caminhante queria uma calçada pra sentar na beira do caminho.  Abaixa-se, segura o chão, mas não consegue impedir-se de ser arrastado pelo caminho.  O caminho agora é quem caminha nele.  Agora é pedra, asfalto, cimento sugando-o num turbilhão de choro, dor, lamento e sangue.  Ele é chão, os dedos em carne viva e não tem onde ser segurar.

Pra onde vais, caminhante da vida? Par onde vais? Até quando o caminho te atropelará?

Um caminhante é erguido pelo vento.  O Sopro sussurra aquilo que ele não lembrava mais, a saudade do que não é vem acompanhada da certeza que será.

Assim ia, impulsionado pelo vento que conduz ao rumo.

Passo a passo retorna também a alegria. O caminho pode ser muito bonito, se sabe-se pra onde ele segue.

 

 

Percepções

Meus sentidos foram se abrindo. Gradualmente, sem alarido, sem esperar. Como descrever o som ao surdo? Sentindo a vibração causada por cada nota. Sentido que cada nota encontra o eco no interior do ser. A certeza do certo confirmada pela alma – escavação arqueológica do espírito.

Pulsa, bate, ecoa, ressoa.

Milagre da união de notas avulsas, metamorfoseando-se em melodia. Existe música, sons em poesia. A Voz guia os passos de quem ainda não vê. A Voz firme, cálida que pronuncia seu nome, irresistível. Estranhamente familiar, mesmo a quem nunca a ouviu antes. A Voz geradora de vida, que faz o coração bombear, que abre os nossos pulmões no primeiro dia, e o fechará no último. A percepção do infinitamente belo.

Cheiros me confundem, apontando para sabores não descortinados pelo palato. Cheiros que vão marcar a trajetória, depois serão “start” da memória. Gostos. Dias de mel, outros de ervas amargas. Gosto do amargo realça o doce.

Ainda na câmara escura. Tato. Eu sinto, logo?…
Tocar o outro, saber que a vida também está ali.
Tocar o outro, quebrar as fronteiras entre o eu e o tu.
Ser tocado, como é bom chorar acompanhado!
Tu me entendes? Sabes que existe alguém além de ti? Quero quebrar esta fronteira maldita que deixa a todos entrincheirados dentro de si.
Eu sinto, logo?… Sinto muito por sentir tanto. Sinto muito por sentirmos tão pouco.

O mundo cresce na medida em que as percepções se expandem. Posso viver sempre no quartinho escuro, fechado em mim. Ou posso abrir a porta. Mito da Caverna de dentro de nós. Tudo é mais. É maior.

Tenho que sair do quarto e ver a rua. Outros andam as tontas como eu. Outros tontos se escondem em baixo da cama. Tenho que sair. Ruas, bairros, cidades. Tenho que sair. Já não basta a rua, preciso da Lua.

Vejo vultos. Imagens imprecisas, turvas como os meus olhos. Tudo está lá, eu que não vejo. TV preta e branca, antena meio torta. Por que não ajeito? De que jeito, se não me percebo?
O mundo não é preto e branco, nem em duas dimensões. O mundo não é uma tela de pintor daltônico.

Ver.
Luz que clareia o dia.
Quero ver.
Forte como o meio dia.
Encandeado, ofuscado no primeiro instante.
Maravilhado pela aurora.

Ver.
Tudo fica claro.
Não em si, mas nele.
Não posso ver o sol, mas vejo tudo por ele.
Como pude ser tão cego!
Tão voluntariamente cego.

Ver.
Delicado como o luar
Refletindo uma outra glória,
Mais distante.
O belo, o puro, o digno.
Luar.

Ver.
Triste como o ocaso.
A morte e esperança do novo dia.
Amado como o ocaso.
Promessas do que a noite trará.

Palheta das infinitas cores
Obra de arte nunca concluída
Vida.
Cada segundo revelando novos tons
Aquarela.
Cada instante vivido, puro impressionismo.
Impressionando-nos pela beleza sem igual.

Vida Bela, aquarela.
Somos co-pintores dela.

TTTRRRIIIIIMMMMM!!!!!! O despertador toca. Acorda, vai escovar os dentes. Acorda. Abra seus olhos. O dia já começou.

(Re-postagem de um texto escrito em 2008, sobre meu processo de conversão)