Arsène Lupin é um gato. Ganhou seu nome em homenagem à personagem de um livro de Maurice Leblanc, um ladrão de casaca, um gatuno, condizente com a malandragem de quem já nasce de bigode.
É curiosamente audaz, talvez por conta de sua infância compartilhada com um cachorro, habitante da mesma casa. Pêlo farto, herança de sua ascendência persa, com a monotonia preto e branca quebrada apenas pelos olhos verdes, de um verde semelhante a fundo de igarapé.

Ainda filhote, passou maus bocados. Uma coceira na orelha esquerda transformou-se em grave alergia ao ser tratada com andiroba, dando-lhe a aparência do Duas Caras dos quadrinhos. Miúdo, pensávamos que um camundongo lhe daria uma surra, se houvesse encontro entre ambos.
Mas cresceu. Em sua fase adulta era o maior e mais bonito gato da redondeza. Lamentavelmente, cada dia que passava sua personalidade assemelhava-se mais a minha. O mesmo ar blasé, o mesmo cinismo, o mesmo espírito nômade . O céu estrelado foi a única testemunha da sua partida. Por causa dos seus hábitos boêmios, demoramos a sentir sua falta – ele breve voltaria, com o ar de ressaca de quem virou anoite na orgia. Mas não voltou.
As semanas passaram-se sem que o vazio deixado por Arsène diminuísse. Senti raiva pela ingratidão da partida sem despedida, da falta de contato, a mesma ingratidão que cometi com meus pais. A tristeza de ter sido deixado para trás.
Não sei se um dia Lupin voltará. Não sei nem mesmo se ainda vive, pois já faz um ano que ele saiu de casa. As vezes alguém me diz que viu um gato parecido com ele na rua. Penso na hora: “gato filho-da-mãe!”.
Mas até hoje não consegui ter nenhum outro gato, por que esse lugar é dele. Acho que também tenho uma fidelidade canina.